04/08/2020

Resenha de Graphic Novel
A odisseia de Hakim #1 - Da Síria à Turquia
Fabien Toulmé


Autor(a): Fabien Tulmé | Título Original: L'Odyssée d'Hakim T01: De la Syrie à la Turquie
Editora: Editora Nemo | Ano: 2020 | Páginas: 272 | Skoob: Adicione | Compre: Amazon
nome do livroSinopse: "Nunca pensei que isso pudesse me acontecer. Mas me dei conta de que qualquer um pode virar um 'refugiado'. Basta que seu país desmorone. Ou você desmorona junto, ou você vai embora." A história real de Hakim, um jovem sírio que teve de deixar tudo para trás: sua família, seus amigos, seu negócio próprio, seu país. Tornando-se assim um "refugiado". Porque a guerra estourou, porque o torturaram, porque o país vizinho parecia capaz de oferecer-lhe um futuro e segurança. Um testemunho poderoso e comovente sobre o que é ser humano em um mundo, muitas vezes, desumano...

Ás vezes pode ser difícil definir um ponto exato de mudança na vida. Falar precisamente sobre algo que a tenha dividido em antes e depois. Podemos citar um acontecimento, uma tomada de decisão ou estimar mais ou menos a época - quem sabe fazendo cálculos de acordo com a idade. Algumas pessoas sequer passam por esse ponto de mudança, mas para Hakim, é muito fácil dizer a data exata em que a vida dele mudou para sempre: 15 de março de 2011. Esse foi o dia da virada. O dia em que seu mundo, todas as suas certezas e a vida que levava e amava virou de cabeça para baixo.

Esse foi o dia em que a guerra na Síria começou... e ela assombra o país até os dias de hoje, 9 anos depois.


Em "A Odisseia de Hakim", nos é contada a primeira parte da vida de Hakim antes e depois da angustiante guerra civil que assola a Síria desde 15 de março de 2011 e que causou uma grande onda de emigração e uma terrível crise humanitária. Em 2020, a guerra completou tristes 9 anos. Estima-se que 6,7 milhões de pessoas abandonaram o país em busca de refúgio e Hakim foi uma dessas pessoas. Vivendo em um  regime ditatorial a décadas com apenas um partido e o poder passando pelas mãos da família Al-Assad desde os anos 70, a Síria saturou-se. Sua população estava cansada de ser controlada, mas era refreada pelo medo uma vez que todos eram vigiados de perto e os supostos opositores eram rastreados, identificados e calados. Nessa atmosfera de terror e repressão, as pessoas não ousavam falar de política. A oposição era, até então, contida.

Entretanto, a Primavera Árabe, uma onda de protestos pacíficos pró-democracia contra os regimes vigentes, se espalhou por vários países do Oriente Médio e África... e atingiu a Síria. O povo começou a reivindicar reformas no governo para que houvesse mais liberdade e justiça (veja bem: reformas, não a queda do regime). Entretanto, a resposta foi violenta. Por morar em um bairro conhecido como um dos maiores focos dos protestos, Hakim acompanhou de perto todos os passos: desde a primeira passeata até a completa instauração do caos.
"Estavam matando pessoas que nem sequer exigiam a queda do regime, apenas um pouco de liberdade (...). Agora, as pessoas não queriam mais se calar ou se submeter. Nas semanas seguintes, houve manifestações em quase todas as tardes de sexta-feita - E também mais confrontos e mais mortes. A oposição se tornou cada vez mais radical. As pessoas começaram a exigir a queda do regime (...). A repressão foi aumentando, se tornando mais violenta. Dava para sentir que o poder queria esmagar a oposição, reduzi-la a nada... foi assim que, pouco a pouco, o país mergulhou na guerra, devagarinho, como um grande navio que afunda." (Págs. 70 - 72)


Pouco a pouco, a vida de Hakim vai desmoronando. Após perder tudo e ser preso e torturado, acusado de ajudar a oposição, ele se vê, então, obrigado a partir em busca de refúgio. Agora ele era um alvo, e não sobreviveria caso fosse preso novamente. Nada mais o prendia no país que antes nunca cogitou deixar e ele inicia, então, uma grande jornada por vários lugares e países para tentar alcançar segurança, oportunidades e qualidade de vida de forma que possa, pelo menos, ajudar sua numerosa família que ficou para trás.

"Nunca pensei que isso pudesse me acontecer. Mas me dei conta de que qualquer um pode virar um 'refugiado'. Basta que seu país desmorone. Ou você desmorona junto, ou você vai embora."

Porém, Hakim enfrenta diversas dificuldades principalmente devido ao preconceito que imigrantes sofrem em todo o mundo. Fabien, autor da HQ, compartilha uma reflexão muito interessante nas primeiras páginas do livro acerca disso. O quadrinista, em busca da razão de não conseguir, em um dado momento, sentir a mesma comoção com uma notícia de um acidente de avião causado intencionalmente por um piloto com depressão e com a de um naufrágio de um barco com cerca de 400 migrantes no mediterrâneo, chega a conclusão de que se trata de uma questão de identificação e proximidade. Por mais que tentemos, não conseguimos entender facilmente o que um migrante sente e vive para chegar ao ponto de largar seu país em busca de refúgio...

Para nós, que vivemos em um país sem guerras, é bem mais fácil nos vermos na situação do avião, mesmo que não viajemos de avião com frequência mas é muito difícil nos colocarmos no lugar do outro. O mundo precisa, urgente, de mais empatia com migrantes. Ler esse tipo de livro sobre migração, com relatos biográficos, é ótimo para desenvolvermos essa tão importante solidariedade e empatia e o formato de Graphic Novel ajuda a aproximar ainda mais o leitor e a criar uma conexão mais forte com a narrativa por conter ilustrações e facilitar a visualização e entendimento. É a segunda HQ que leio sobre migração esse ano e estou bem feliz com isso.


Hakim vive na pele essa falta de empatia. É visto como um estorvo, um problema e não consegue emprego pelo simples fato de ser imigrante e, assim, tem dificuldade de se integrar e de se reerguer na vida. Tudo isso favorece o desenvolvimento de um sentimento de não pertencimento em lugar algum e dificulta a melhora de vida de indivíduos nessas situação. Muito triste pessoas passarem por coisas terríveis, terem que fugir de guerras e ainda sofrerem rejeição por serem refugiados. 
"Tinha a impressão de que nunca mais me sentiria em casa em lugar algum." (Pág. 188)
Ademais, eu gostei muito de entender mais sobre a história da Síria e sobre a essência desse confronto. Todos ouvimos muito sobre a guerra que ocorre nesse país no noticiário mas eu nunca tinha parado para me informar de fato sobre o contexto e as causas e foi muito interessante aprender por meio de relatos de quem viveu tudo isso de verdade. Eu digo e repito: amo ler e aprender coisas novas durante a leitura. Claro que eu fechei o livro e fui correndo pesquisar mais sobre a cultura da Síria e a guerra e aprendi sobre muitas outras coisas também sobre o Oriente Médio. Ler livros é, inclusive, uma ótima dica para instigar o aprendizado de história.


Uma das coisas que mais me aproximou e me prendeu à narrativa foi o fato de que, diferentemente de outros conflitos que conhecemos, lemos livros sobre e estudamos nas aulas de história, esse é bem recente e ocorreu ainda na década encerrada em 2019. Ou seja, tanto eu quanto você já estávamos vivos na data e eu consigo me lembrar do que estava fazendo naquele ano e, principalmente, de ler e assistir notícias  ao longo do tempo sobre esse triste conflito que estava acontecendo (e ainda acontece) na Síria. Falou-se muito sobre isso. E é até engraçado pensar que, enquanto eu tinha preocupações básicas da vida - que agora soam tão fúteis - milhares de pessoas estavam passando por tudo aquilo, muitas morrendo e outras lutando para sobreviver à guerra.


Sobre o projeto gráfico, eu gosto bastante dos traços do Fabien, apesar de achar que esse estilo mais cartunesco não passa suficiente melancolia e dureza a qual uma história sobre a guerra costuma requisitar. Majoritariamente, a HQ é ilustrada com tonalidades das cores da capa: Azul, bege, marrom, preto e branco e elas caracterizam os relatos e vivências de Hakim no livro. Para separar as lembranças do resto da história, como nas partes em que Fabien aparece entrevistando Hakim, foi utilizado tons de azul, roxo e rosa.

Algo que me incomodou foi que tive a impressão de que os balões de fala não foram realmente modificados e adaptados para a tradução em português, de forma que alguns quadrinhos ficaram com as falas encolhidas e meio distorcidas para caber no espaço. Isso não atrapalha a leitura, mas com certeza incomoda alguém que seja bastante detalhista ou que tenha um pouco mais de senso de design e diagramação. Poxa vida, em uma HQ o projeto gráfico conta tanto quanto o resto e detalhes importam muito.


A história de Hakim foi divida em três volumes mas até o momento só o primeiro está disponível em português. Os Próximos contam a trajetória de Hakim da Turquia à Grécia e da Macedônia à França. Quero muito continuar acompanhando a trajetória dele em busca de paz e qualidade de vida. Aguardo ansiosamente os próximos volumes, tomara que a editora lance em breve. Vale muito a pena ler, acompanhar a jornada de Hakim, entender mais sobre a guerra da Síria e refletir acerca de como os migrantes são tratados.


Muito boa! Portanto, essa HQ ganhou 4 novelinhos.




A Odisseia de Hakim
Fabien Toulmé



Sobre o autor

Fabien Toulmé
 Fabien Toulmé
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Leitor dos quadrinhos franco-belgas clássicos desde a mais tenra idade, Fabien Toulmé viajou por vários países (inclusive pelo Brasil) ao longo de 10 anos, trabalhando como engenheiro civil. Em 2008, retornou à França com desejo de se dedicar aos quadrinhos. Sua estreia no mundo das graphic novels foi em 2014 com "Não Era Você Que Eu Esperava", um relato sensível do nascimento de sua segunda filha Júlia, que tem síndrome de down. Em 2017, nos brindou com "Duas Vidas", uma belíssima história sobre a coragem e o amor entre irmãos. Em "A Odisseia de Hakim", Fabien nos apresenta, em três volumes, a história real de um jovem sírio que vislumbrou a face mais sombria da humanidade e teve de enfrentar duras provações em sua luta pela sobrevivência e por uma vida digna.

Au revoir ♡

5 comentários:

  1. Oi, Polyana como vai? A HQ está com ilustrações muito bonitas, embora simples. Sua análise ficou incrível, parabéns! Fiquei com vontade de lê-lo. Abraço!


    https://lucianootacianopensamentosolto.blogspot.com/

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  2. Que incrível poder ler sobre esse assunto num formato tão legal! Sou bem leiga a respeito dos conflitos árabes, então fiquei bem interessada nessa leitura. A resenha ficou perfeita! Parabéns pelo post <3

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  3. Não conhecia este livro, mas acho importante conhecermos um pouco sobre outras realidades. Parabéns pela resenha e as fotos ficaram incríveis nos deixando com vontade de conhecer mais sobre essa história. E as ilustrações trazem um pouso de leveza para um tema tão denso.

    Blog Profano Feminino

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  4. Uau! Essa história realmente deve ser forte, e fiquei um tempão refletindo sobre isso que qualquer um pode ser um refugiado. Eu nunca havia parado pra pensar nisso, mas é verdade...
    Sobre as ilustrações, pensei o mesmo que você vendo as fotos...apesar de ter a sensação de uma história triste, as ilustrações são bem "fofinhas" ao meu ver.

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  5. Olá!!! eu não conhecia o livro, e achei interessante, gostei do livro ele tem desenhos, faz meu estilo de livro que gosto de ler.

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